quarta-feira, 29 de outubro de 2008

amor primeiro


Era um homem, um homem comum, que um comum destino parecia controlar inteiramente. Um animal doméstico bem treinado.
Um dia sentiu um incômodo nos dois ombros, distensão muscular, má posição no trabalho.. Foi piorando e resolveu olhar-se no espelho, de lado, inteiro e nu depois do banho: não havia dúvida, duas saliências oblíquas apareciam em sua pele abaixo dos ombros. Teve medo mas decidiu não comentar nada com ninguém, e como não transava freqüentemente com a mulher, conseguiu esconder tudo quase um mês.
Fez como via fazer sua mulher: pegou de cima da pia um espelho redondo no qual ela ajeitava o cabelo, e passou a analisar todo dia aquele fenômeno que em vez de o assustar agora o intrigava. Curioso mas sem sofrer - pois não doía -, foi observando aquilo crescer.
E pensava:
Nem adianta ir ao médico, porque se for um tumor (ou dois) tão grande, não tem mais remédio, é melhor morrer inteiro do que cortado.
Certa vez, quando se masturbava no banheiro, na hora do prazer sentiu que elas enfim se lançavam de suas costas, e viu-se enfeitado com elas, desdobradas como as asas de um cisne que apenas tivesse dormido e, acordando, se espojasse sobre ás aguas.
Ficou ali, nu diante do espelho, estarrecido.
Agora ele não era apenas um homem comum com contas a pagar, emprego a cumprir, família a sustentar, filhos a levar para o parque, horários a cumprir: era um homem com um encantamento.
Eram umas asas muito práticas aquelas, porque desde que usasse camisa um pouco larga acomodavam-se maravilhosamente debaixo das roupas. Em certas noites, quando todos dormiam, ele saía para o terraço, tirava a roupa e varava os ares.
Sua mulher notou alguma coisa diferente no corpo do seu marido. Estava ficando curvado, tantas horas na mesa do trabalho. Nada mais que isso. Embora a mãe lhe tivesse dito que "com homem é melhor confiar desconfiando", daquele seu homem pacato ela jamais imaginaria nada muito singular.
- Você vai  acabar corcunda deste jeito, aprume-se - ela dizia em seu tom de desaprovação conjugal.
As coisas se complicaram quando, já habituado à sua nova condição, o homem-anjo olhou em torno e, sendo ainda apenas um homem com asas, sentiu-se muito só. E começou a pensar nisso. E olhou em torno e se apaixonou.
Na primeira noite com sua amante, esqueceu o problema, tirou a roupa toda, e quando ela começava a apalpar-lhe as costas o par de asas se abriu, arqueou-se unindo as pontas bem no alto por cima dele, na hora do supremo prazer.
Mas essa mulher/amante não se assustou, não se afastou. Apertou-se mais a ele, e dizia: vem comigo, vem comigo, vem comigo....
E abriu suas asas também.

(Histórias do tempo, 2000)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

nova estação

todo dia na vila

É melhor atirar-se à luta em busca de dias melhores, mesmo correndo o risco de perder tudo, do que permanecer estático, como os pobres de espírito, que não lutam, mas também não vencem, que não conhecem a dor da derrota, nem a glória de ressurgir dos escombros. Esses pobres de espírito, ao final de sua jornada não agradecem por terem vivido, mas desculpam-se, por terem apenas passado pela vida.
 
E esta foi a essência da força daquela tarde de segunda.
Uma partida e um adeus impresso no espelho.
Um itinerário que me trouxe pro agora, presente momento.
Nada é igual.
Nem o rio, nem o garoto que retorna ao rio.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

itinerário




O tempo, além de ser o meu tempo, para realizar qualquer coisa positiva e plausível - ainda que seja mudar de lugar a cadeira (até de rodas) e ver melhor a chuva que cai.
Se sonharmos apenas com a viagem a lua, cuidar das rosas pode parecer tedioso demais, e não cultivaremos coisa alguma.
A vida é sempre nossa vida, aos 12 anos, aos 30 anos, aos 70. Dela podemos fazer alguma coisa mesmo quando nos dizem que não. Dentro dos limites, do possível, do sensato, podemos. 
Só seremos nada se acharmos que merecemos menos de tudo que ainda é possível obter.

sábado, 11 de outubro de 2008

perder sem se perder



A melhor parceria deve ser aquela que aceita um o outro sem ter de se submeter a qualquer coisa pelo outro, em que um aprecia e admira o outro, mas tem por ele ternura e cuidados. Sobretudo aquela em que um parceiro não investe no outro todos os seus projetos, à primeira decepção passando de amor a rancor.
Se o outro serve de cabide para nossos sonhos mais extravagantes de perfeição, o primeiro vento contrário derruba o pobre ídolo que não tem culpa de nada.
No casamento saudável há um propósito geral: quero passar com você os melhores dias de minha vida, construir com você uma relação gostosa, importante e definitiva.
É importante não correr para os braços do outro fugindo da chatice da família, da mesmice da solidão, do tédio. É essencial não se lançar no pescoço do outro caindo na armadilha do "enfim, nunca mais só", porque numa união com expectativas exageradas decreta-se o começo do exílio.
Amor bom, além do mais, tem que suportar e superar a convivência diária. A conta a pagar, o emprego sem graça e o chefe grosseiro. Quando cai aquela última gota, a gente explode. Quer matar e morrer, e nos damos conta: nada mais em nossa relação é como era no começo. Não é nem de longe como planejavamos que fosse.

Na verdade, na parceria amorosa, como em tudo o mais, recomeçamos tudo todos os dias. Então podemos começar diferentes também aqui e agora.
Precisamos de criatividade em um relacionamento amoroso. O problema é que quando se fala em criatividade se pensa em primeiro em inovações no sexo. Transar bem é resultado, não meio.
Passada a primeira fase de paixão (ela passa, mas que não significa tédio nem fim de tesão), a gente começa a amar o outro de outro jeito. Ou a amar melhor, ou aí é que a gente começa a amar de verdade, a querer bem, a apreciar, a respeitar, valorizar, a mimar, a sentir falta, a conceder espaço, a querer que o outro cresca e não fique grudado na gente.
Se você ama alguém, deixe-o livre.
Laços podem ser reconstruídos, remendados ou cortados. O corte se faz com mais ou menos generosidade, carinho ou hostilidade e raiva - sempre com dor. Porém nenhuma união deveria ser a sentença definitiva de aniquilamento mútuo dentro de uma jaula.

tempo tempo tempo



No amor pensamos viver o mito da fusão com o outro, Queremos perder a identidade nas mãos daquele que no momento é tudo para nós.
A paixão inicial quer ver, mostrar. É compulsão de nos abrirmos com o outro e mergulharmos nele, revelando os menores detalhes de nossa alma, incansáveis relatos do passado, trocas que parecem levar à sonhada união total.
Porém uma ligação amorosa é uma longa elaboração: enfrenta toda uma série de transformações de parte a parte. Mudamos e os parceiros não mudam necessariamente no mesmo ritmo, com a mesma intensidade ou no mesmo sentido.
O instinto e o afeto é que fazem com que os bons casais, usem dessas fases de crise para se renovar e crescer, se possível juntos. Desde que o instinto seja saudável, o afeto bom, a personalidade aberta.
Pode ter reveses financeiros, pode ter fracassos profissionais. Pode evoluir com o tempo, ou ficar atrás em relação ao outro.
Instala-se entre ambos o jogo do poder em que o mais fraco tiraniza aquele que se submeteu mais, abdicou de mais coisas.
Aquele que está em vantagem, pode ceder a chantagens, podar suas asas e truncar seu destino para não humilhar o parceiro.
Mas frequentemente, aquele que poderia dar o passo decisivo e consertar sua vida, mesmo dentro da relação, não se permite isso. A culpa não deixa. O medo de perder o parceiro não permite. O receio da solidão, pior ainda.
Tudo fica como está: por baixo das aparências corre o rio turvo do lento e suicídio a dois, físico ou moral. É a morte das alegrias e ternura, um acordo fatal na qual a esperança fica revogada. A culpa, é como uma mala cheia de tijolos, peso inútil que carregamos de um lado para o outro sem objetivo algum. Haveria só uma solução; joga-la fora inteira ou ao menos parte dela.

escolhas



Para amar preciso primeiro me amar. Vou procurar um amor bom pra mim - na qual me reconheço e me reencontro, me refaço e me amplio, me exploro, me descubro - se minha imagem interior me levar a isso.
O amor mais do que tudo revela: manifesta nossas tendências, o que preferimos e escolhemos para nós. Quero, mereço ser feliz e fazer feliz ou preciso me punir e castigar o outro?
"Escolha" amorosa pode parecer contradição. É em parte consciente, segundo nossos agrados e necessidades. Mas é bastante inconsciente, brotas dos impulsos mais primários, daquele nosso EU dissimulado por trás de muitas máscaras.
Escolho conforme minha saúde mental e emocional ou minha doença, meus desejos mais obscuros, meus movimentos inconscientes em direção a destruição e afirmação.
Nosso lado mais oculto sente, fareja: aqui devo investir minha emoção, aqui conseguirei me doar, aqui há alguém com quem posso pensar ou construir um relacionamento.

resquícios




O amor primeiro, aquele entre pai e filhos, vai determinar nossa expectativa de todos os amores que teremos. Nossa vivência inicial vai marcar muitas de nossas existências futuras.
Todo amor tem ou é crise, todo amor exige paciência, bom-humor, tolerância e firmeza em doses sempre incertas. Não há receita nem escolas para ensinar a amar. Amar é impor e aceitar limites.

"Sempre senti que minha mãe não sabia o que fazer comigo."
"Nunca entendi o que realmente meu pai queria de mim, eu sempre um estranho."

Esse grupo familiar que não escolhemos e nos define tanto pode ser um ponto confiável de onde partimos e ao qual podemos retornar, ainda que em pensamento. Aquele lugar.. que será sempre meu lugar, mesmo que eu já não viva mais nele.
Não podemos alterar o passado. Mas podemos alterar nossa postura em relação a tudo isso.
Posso me libertar. Posso me reprogramar para discernir neste momento, o que é melhor para mim.

Atrás e a frente de cada casal humano estende-se uma longa cadeia de erros e acertos geradores de humanidade.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

meu encontro com lya




Tudo se complica porque trazemos nosso equipamento psíquico. Nascemos do jeito que somos: algo em nós é imutável, nossa essência são paredes difíceis de escalar, fortes demais para admitir aberturas. Essa batalha será a de toda nossa existência.
As ferramentas para executarmos a tarefa de viver podem ser precárias. Isso quer dizer: algumas pessoas são mais frágeis que outras. 
O meu diminuto jardim me ensina diariamente que há plantas que nascem mais fortes, outras malformadas, algumas são atingidas por doença ou fatalidade em plena juventude, outras na velhice retorcida ainda conseguem dar flor.
Essa mesma condição é a nossa, com uma diferença dramática: podemos pensar.
Por isso, mais uma vez, somos responsáveis, também por nós. Somos no mínimo co-responsáveis pelo que fazemos com a nossa bagagem que nos deram para esse trajeto entre nascer e morrer.
Carregamos muito peso inútil. Largamos no caminho objetos que poderiam ser preciosos e recolhemos inutilidades. Corremos sem parar até aquele fim temido, raramente sentamos para olhar em torno, avaliar o caminho, e modificar ou manter nosso projeto pessoal.
Ou nem tinhamos desejos pessoais. Nos diluímos nas águas da sorte ou da vontade alheia. Ficamos tênues demais para reagir. Somos os que se encolhem nos cantos ou sentam na berada da poltrona dos salões da vida.
Cada desperdício de um destino, um indivíduo que se proíbe de se desenvolver naturalmente conforme suas capacidades ou até além delas, me parece tão tragico e tão importante quanto uma guerra. 
Não deviamos escrever artigos e fazer passeatas apenas contra a guerra, a violencia, a corrupção e a pobreza, mas proclamar a importância do que semearam em nós, individuos. De como o devemos cuidar no tempo que nos foi dado para essa jardinagem singular.

o centro

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Centro é o que ocupa a prioridade em nossas vidas e em nosso cotidiano, aquilo para o qual convergem o olhar, a emoção e a vontade. Centro é também um ponto equidistante, mas relativo: o centro das atenções, centros e periferias, o centro do coração, o foco central,  os novos centros do mundo, centros de comunicação e inovação, a viagem ao centro da Terra são idéias e conexões criadas a partir da palavra.
Centro pode sugerir coesão e convergência. Egocentrismo e periferia. Centro é o lugar de onde vêem a luz e a informação, é onde nascem as cidades. O local em que nos reunimos ou que foi esquecido. Centro é o nosso umbigo e o alheio.
Um centro se desloca de quando em quando. Para a criança o centro é sua mãe, depois seu entorno, com o crescimento a vida vai se ampliando e o centro descentra-se. 
Ao entrar no centro, o que estava fora ganha uma nova forma. E se transforma sob o olhar dos que observam e dos que constroem.